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Nossos irmãos se tornaram “bichos”?

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


Este poema de Manuel Bandeira foi publicado em 1948, mas parece mesmo que fala das realidades de nossas grandes cidades de hoje, especialmente as capitais dos estados brasileiros. É nítido que, ao passar por algumas avenidas e ruas no centro de Belo Horizonte, sentimo-nos transportados para dentro das palavras poéticas citadas acima.


Foto: Adobe Stock

Jogados à beira das estradas, como aqueles miseráveis que viam Jesus passar, esses nossos irmãos têm se tornado cada vez mais “bichos” aos olhos de seus concidadãos. Esses irmãos, por um motivo ou outro, encontram-se no limiar entre a vida e a morte. O que mais nos assusta é a banalização do mal, como bem já dizia Hannah Arendt. Em uma caminhada breve por algumas dessas ruas, somos abordados várias vezes por esses caminhantes andrajosos, vestidos de farrapos, suplicando por uma moeda ou comida. À primeira vista, aquilo nos soa execrável: “como pode um cidadão brasileiro ser abandonado assim às traças?” No entanto tudo vai se tornando “normal”, conforme nos acostumamos com essa realidade subumana, e começamos a sentir-nos anestesiados, apáticos e indiferentes para com todos esses clamores desesperados.


Drogas? Entorpecentes? Vícios? Depressão? Frustrações? Desespero? desemprego? São tantas as causas possíveis para uma pessoa estar vivendo na situação de rua. Precisamos de uma sociedade mais sadia, mais comprometida com a realização plena de todos os seus cidadãos. Sim, mas e o que fazer sobre a realidade que podemos constatar neste momento? É possível que o Poder Público esteja fazendo muito menos do que poderia fazer? Seria totalmente errônea a impressão que os habitantes da cidade e os turistas têm sobre um certo descaso com esses desabrigados? Talvez um esmorecimento dos projetos governamentais?


O Santuário São José, no centro de Belo Horizonte, é um dos símbolos mais icônicos dessa cidade. Milhares de pessoas passam por ele diariamente. Além dos fiéis paroquianos, também centenas de romeiros provenientes de todos os cantos do país. Hoje o Santuário tem de lidar com uma crise jamais vista na sua história: os irmãos desabrigados que perambulam pelas ruas. Todos os dias, vários deles visitam a casa sagrada. Alguns querem apenas um auxílio para aplacar sua fome ou sua dor, ou fazer uso dos banheiros e dos bebedouros. Outros, infelizmente, demonstram hostilidade contra os funcionários, os fiéis e os romeiros. A mendicância, que existe desde tempos imemoráveis, torna-se um problema, quando pessoas armadas com armas brancas ameaçam as pessoas vulneráveis que estão na igreja em busca de refúgio espiritual.


Sim, milhares de pessoas visitam o Santuário, mas já não há o sentimento de segurança que havia antes. Os órgãos públicos estão sempre cobrando e fazendo exigências para o Santuário, pois é um patrimônio tombado. Mas não se enganem, nenhum poder governamental colabora com um centavo que seja, o que também não nos interessa. Vivemos da generosidade do povo católico, dos paroquianos fiéis, que sempre foram os guardiões desse templo. Tentamos proteger o máximo possível esse nosso tesouro belorizontino, mas queremos expressar a todos os habitantes da cidade que não temos a proteção dos poderes públicos. Não há policiamento, não há segurança, não há participação daqueles que vivem cobrando e exigindo, e que no fundo desejam que a igreja se torne um grande museu, calando, por fim, a voz da religião.


Quando os candidatos passarem pela sua casa, pela sua igreja, pelos seus locais de trabalho, perguntem quais são os projetos de ressocialização dos nossos irmãos, que vivem como bichos pelas ruas. Cobrem resultados, porque nos cansamos de belos projetos no papel. É lindo como alguns se gabam de quantos programas têm sido realizados para a população vulnerável em situação de rua, mas os nossos olhos veem o contrário em toda a cidade: um número infindável de jovens e mais jovens, ziguezagueando pelas ruas como naqueles filmes de zumbis. Quem poderá ajudar de fato esses nossos irmãos “bichos”? Essa é uma boa exigência para o seu candidato preferido.


Enfim continuamos fazendo o nosso trabalho de formiguinha. A Igreja sempre se preocupou com os pobres e abandonados. O Santuário São José e a Arquidiocese de Belo Horizonte possuem muitas obras sociais, mas não são suficientes para resolver adequadamente os problemas estruturais de nossa cidade. Esperamos, com muita fé, que medidas drásticas sejam tomadas para retirar nossos irmãos da dependência química e dar-lhes a oportunidade de uma vida plena. Esperamos, também, que os poderes públicos protejam seus cidadãos, pois muitos querem somente rezar em paz, sem medo de serem roubados ou feridos no local sagrado. Todos temos direito de professar e vivenciar a nossa fé, pela Constituição Brasileira, e garantir esse direito básico é o que pedimos aos governantes da cidade.


Que o Senhor Deus toque no coração de todos os habitantes de nossa Capital para que possamos, juntos, dar novos rumos a nossa linda Belo Horizonte. Que Maria, a Virgem das Dores, acolha os seus filhos sofredores no colo e os leve sempre ao Cristo Jesus, para que tenham conforto, segurança e paz. Amém!


Pe. José Luís Queimado, C.Ss.R.

Reitor e Pároco do Santuário São José

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